Povo Santo e Pecador

Tornou-se comum falar que a Igreja é “santa e pecadora”. É preciso cuidado com essa expressão que pode provocar interpretações teologicamente erradas. Por isso procuremos aprofundar a história da reflexão sobre o mistério da santidade da Igreja.

Santo Tomás de Aquino não tem dúvidas quanto à santidade da Igreja o que não significa que ela seja formada só por perfeitos. A santidade da Igreja é real, mas é também um dom escatológico: “Que a Igreja seja gloriosa, sem mancha nem ruga, é a meta última para a qual somos conduzidos pela Paixão de Cristo. Isso acontecerá, portanto, somente na Pátria eterna, não no caminho para ela, no qual, se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, como é dito em 1Jo 1,8” (STh III, q. 8, a. 3, ad 2m).

Essa consciência de que os pecadores fazem parte da Igreja no tempo de sua peregrinação terrestre, levou a Igreja a evitar as posições puristas e rigoristas, que desejavam fazer dela uma comunidade formada somente dos perfeitos. Mais do que isso, a Igreja condenou muitas seitas e movimentos espiritualistas como heréticos: os montanistas (fim do século II), os novacianos (séc. III), os donatistas (séc. IV), os pelagianos (séc. V), os cátaros outras seitas da Idade Média.

Também na época moderna, a Igreja manteve sua oposição contra os que concebiam a Igreja destinada somente aos predestinados e aos justos. O Concílio de Constança (1515) rejeitou as posições de Hus e de Wyclif, afirmando que o pecador com culpa grave, se não perdeu a fé, continua sendo membro da Igreja (cf. DS 1201,1203,1205, 1206). A mesma doutrina é reafirmada por Pio XII na encíclica Mystici Corporis (1943): “Não se deve pensar que o corpo da Igreja, neste tempo de sua peregrinação terrena, consta somente dos membros que sobressaem pela santidade, ou que reúne somente aqueles que tenham sido escolhidos por Deus para a felicidade eterna. Porque não todo pecado, ainda que seja voluntário e grave, separa, pela sua própria natureza, o homem do corpo da Igreja, como o separa o cisma ou a heresia ou a apostasia” (DS 3803).

Encontramos nos documentos do Vaticano II, indicações iluminadoras sobre o tema da santidade e do pecado da Igreja.

A Igreja, para a qual somos todos chamados em Cristo Jesus e na qual pela graça de Deus adquirimos a santidade, só se consumará na glória celeste, quando chegar o tempo da restauração de todas as coisas (At 3,21)” (LG 48).

A santidade para a Igreja não é somente utopia. Já é realidade na Igreja, mas deve crescer ainda: trata-se de “uma verdadeira santidade, ainda que imperfeita” (48,3). Assim a Igreja peregrina na história é já santa, mas carrega em si a figura deste mundo que passa. Ela é santa pelo fato de ser obra de Deus. Da parte dos cristãos, porém, há tanto fidelidade quanto infidelidade. Em seu caminho histórico a Igreja experimenta, portanto, junto com iniciativa redentora e santificadora de Deus, também as quedas e as trevas do erro.

À Igreja pertencem plenamente os que têm “o Espírito de Cristo” e receberam a graça da justificação. No entanto, ocorre também que membros permaneçam na Igreja sem tal graça, ou seja, pertençam ao corpo, mas não ao coração da Igreja. Mesmo que muito imperfeita, essa incorporação possui significado positivo, uma vez que o membro, pelo próprio fato de continuar pertencendo ao corpo da Igreja, é instado constantemente a reavivar sua fé e reacender sua caridade (LG 14,2).

Não encontramos na Constituição Lumen Gentium a expressão “Igreja pecadora”. Em vez disso fala que a Igreja é “santa e ao mesmo tempo tem que ser sempre purificada”, tem que “buscar sem cessar o caminho da penitência e da renovação” (LG 8,3) e, de fato, “sob a ação do Espírito Santo, não deixa de renovar-se a si mesma” (LG 9,3). A ausência das expressões “Igreja pecadora” e “pecado da Igreja” revela, de uma parte, que não devemos colocar no mesmo plano a santidade e o pecado, e por outra, que tais expressões foram evitadas conscientemente pelos padres conciliares. De qualquer forma, os mesmos não deixaram de assinalar que a Igreja também “abraça em seu próprio seio os pecadores” (LG 8,3).

A Igreja, mesmo ferida pelos pecados de seus filhos (LG 11,2) não cessa de pedir a Deus o perdão das ofensas (cf. Tg 3,2). E não só: através do ministério da reconciliação e a celebração do memorial do sacrifício de Cristo, a mãe Igreja vence os pecados nos seus filhos porque lhe foi conferido por Deus esse poder.

A afirmação mais importante do Concílio Vaticano II sobre a santidade da Igreja é: “Cremos que a Igreja, cujo mistério é proposto pelo Sagrado Sínodo, é indefectivelmente santa. Pois Cristo, Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito Santo é proclamado o ‘único santo’, amou a Igreja como sua esposa, entregando-se por ela para santificá-la (cf. Ef 5,25-26), e uniu-a a si como seu corpo e cumulou-a com o dom do Espírito Santo, para a glória de Deus” (LG 39,1).

Com a palavra “indefectível” se exprime em forma negativa o mesmo conceito que, em forma positiva, é definido com o termo “santo”. Quando se afirma que a Igreja é indefectivelmente santa, deseja-se dizer que ela nunca perderá a graça de Cristo que a consagra inteiramente a Deus e que, portanto, não perderá jamais a sua amizade, a inabitação do Espírito Santo e a incorporação a Cristo. A Igreja nunca poderá cair sob o jugo do Maligno. Isso tudo por uma promessa explícita que Jesus fez a Pedro, chefe da comunidade apostólica e da Igreja nascente: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno nunca prevalecerão sobre ela” (Mt 16,16).

Afirmando que a Igreja é “indefectivelmente santa”, fica estabelecida uma primazia da santidade sobre a pecaminosidade. Santidade e pecado não coexistem em pé de igualdade na Igreja, uma vez que a obra de Deus está acima e é mais poderosa do que os pecados dos homens. Assim a Igreja, pela graça vitoriosa de Cristo, é e será sempre mais santa do que pecadora.

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